quinta-feira, 30 de julho de 2009

Canto [Cindy Wilson]


O corpo da mulher foi analisado, a partir do século XIX, como corpo saturado de sexualidade e integrado sob o efeito de uma patologia intrínseca ao campo das práticas médicas. Com efeito, o corpo da mulher foi posto em comunicação num tríplice processo: com o corpo social [assegurar a fecundidade]; com o corpo familiar [como elemento funcional]; com o corpo das crianças [pela responsabilidade ‘biológico-moral’ substancial]. Enfim, trata-se mais de um processo de histericização do corpo da mulher do que uma histeria patológica propriamente dita, mas ato estratégico, no gesto que criou a imagem negativa de uma ‘mulher nervosa’, cuja forma mais perceptível dessa ‘histeria’ sempre se manifestou pelo grito. Mas é certo, o canto deve imitar os gritos e os lamentos. Observa-se que a unidade natural da voz e do canto no grito é uma experiência que supõe a distância que separa a ‘voz da fala’ da ‘voz do canto’ mais ou menos harmoniosa. O grito surge aqui como uma metáfora da voz da natureza, voz doce, materna, fala cantada que não se pode desobedecer. Essa fala viva e feminina alcançou tons memoráveis, hipnóticos, apagando os acentos mais circunflexos e redistribuindo as vozes sob uma esteira melódica e harmônica elegantemente afinada, pode-se até ouvir Cindy Wilson cantar, com seu cabelo de bolo confeitado. Cultuada durante a década de 1980, os B-52’s tornou-se o cerne da geração new wave. Entre eles, a música é produzida na medida em que se fazem jams, ao improvisá-la, chegam a demorar uns dez ensaios para trabalhar uma música. Os B-52’s param e retomam com as harmonias vocais, com as melodias e as letras. Rock Lobster, de 1979, é uma música performática, mas atual até hoje. David Byrne, integrante dos Talking Haeads, produziu o terceiro disco da banda, o Mesopatamia, em 1982. Legal Tender e Song For A Future Generation datam de 1983 e fazem parte de Whammy!, o álbum que praticamente inaugurou a new wave no Brasil. O guitarrista Rick Wilson, morto em decorrência da AIDS em 1985, foi homenageado com a edição dos vídeos da banda, compilados pela Warner. Love Shack e Roam são músicas do álbum Cosmic Thing de 1989. Cindy Wilson deixou a banda sem participar da gravação do disco Good Stuff, em 1992, com o intuito de ir para Georgia e constituir família, embora ela tenha voltado para os B-52’s em 1998.

Mask [Siouxsie Sioux]


É na expressão facial que se exprime a disposição humana para os mais ricos jogos de metamorfoses fisionômicas. A máscara é aquilo que não se transforma, inconfundível e duradoura, produz o efeito de ocultar tudo quanto há por trás de si. Quanto mais nítida ela for, mais obscuro será tudo aquilo que houver por trás dela. A tensão entre a rigidez da máscara e o segredo que oculta é a razão de seu caráter ameaçador. Mas a máscara produz também um efeito tranquilizador, porque se interpõe entre o perigoso [que está atrás da máscara] e o observador. Assim, para o observador, a máscara pode banir o perigo. Carregando os mesmos perigos e as mesmas tranquilidades, a maquilagem não deixa de ser máscara, porém muito mais efêmera e mais sutil, menos oculta. Deste modo, a maquilagem dela sempre foi muito expressiva, pelo menos, o bastante para carimbar a sua imagem. Da máscara à maquilagem há uma enormidade de gradações, passando quiçá pelas tatuagens, que se estabelecem sem grandes oposições, mas secretam diferenças: uma se sobrepõe sobre a pele, a outra gruda e se esfuma com facilidade. Acontece que elas marcam os rostos, não só os escondem. Siouxsie Sioux não usa máscaras, mas, por exemplo, os cosméticos borram propositalmente o seu rosto nórdico, colorem e rasuram o que naturalmente seria pálido. Seu nome Sioux provém das tribos norte-americanas, mas sua banda Siouxsie & The Banshees foi germinada no Reino Unido, no final da década de 1970. Período em que as bandas foram formadas por ex-pub rockers e jovens que passavam a maior parte de seu tempo nas ruas, tendo no punk a oportunidade para se expressar, apesar de exigir o mínimo de profissionalismo. Robert Smith juntou-se aos Banshees, gravando inclusive um show no Royal Albert Hall em setembro de 1983, embora também fosse integrante do Three Imaginary Boys e do The Cure: célebre show com Helter Skelter e Dear Prudence de Lennon e McCartney. Um dos discos mais esperados da banda foi Once Upon A Time, com os singles de 1978 a 1981 reunidos. Spellbound teve clip, numa fuga fatigante, em que Budgie [baterista] dava saltos sobre barras invisíveis, dirigido por uma câmera enfurecidamente locomotora.

Suingue [Fernanda Abreu]


Em plena Alemanha nazista, na II Guerra Mundial, a Blitzkrieg, guerra-relâmpago e policial, deu origem ao nome Blitz, banda que contou com a participação de Fernanda Abreu. Suas incursões neste grupo proporcionaram-lhe estender-se em sua carreira solo. O líder do Soul II Soul, Jazzie B, a conheceu quando ela remixava um de seus discos nos estúdios dessa banda nos EUA. Assim, foi sendo cultuada a rainha da dance music brasileira, sem nunca deixar o funk. Da Lata foi um disco célebre, com Brasil É O País Do Suingue, um som que espanca e sara, ao aliar morro e asfalto, Zona Sul e Baixada, Lapa e Borel. Quem não temeu essa fusão? Trata-se de criar um muro sonoro para cada lar com aparelhos de rádio e televisão, obras obscuras que refundaram as cidades. Afinal, quando dois seres são capazes de se afrontar, muito barulho acontece. O ritmo de um cresce quando ele se aproxima do morro, o ritmo do outro decresce quando se afasta do asfalto e, entre os dois, nas fronteiras, uma constante oscilação se estabelece: um ritmo ativo testemunhou o Rio.

Muco [Luke & Tantra]


A banda Muco é formada por Luke no vocal e guitarra, Tantra no baixo, também conta com a presença de Montanha, na bateria, e a participação suspeita de Orelha. Certa vez Luke pediu a Tantra para fazer um solo no baixo. Mas Tantra perguntou: ‘Fazer um solo? E se eu engravidar?’ – retrucou a menina... ‘Droga, fiz xixi’. Luke amava Baudelaire, Lou Reed e cantava: ‘acordo e mando o mundo a merda/ no almoço a comida é azeda/ no jantar eu não aguento mais!’ Ele ia na frente do palco e gritava Yeah! Era isso o que o Zoreia fazia na banda, segundo Tantra, além de viver reclamando com a Luke sobre o novo estilo TPM rock. Montanha disse uma vez que o nome da banda podia ser Muco. ‘Muco?’ – todos perguntaram. ‘De onde você tirou esse nome?’ – Tantra não resistiu. Respondeu ele: ‘Do nariz’. O espaço de representação se consolidou nos quadrinhos de jornais, com a rubrica de Angeli, ao perceber no Brasil do final da década de 1990, que o rock’n’roll tornava-se cada vez mais das mulheres, irreversivelmente feminino. Enquanto isso, longe em seu castelo, murado com cercas elétricas e programado, sob as leis brutais da sombra e da luz, que aceleram os gestos dos seus cruéis habitantes, numa teatralidade congelada, a boa-mãe folheava os classificados em sua alcova.

Pus [Syang Death]


Syang já destilou canções senão românticas, pelo menos suaves, mas foi com o heavy metal que ela se consagrou. Antes de empunhar a sua guitarra no PUS [Porrada Ultra Suicida], Syang Death foi encontrada em um natal na Disneylândia, cantando Merry Christmas. Mas isso foi em 1986, ela tinha 17 anos, quando fez um intercâmbio nos EUA. Syang nunca se enganou, ela era o maior atrativo do PUS, com seu visual louro e sua imagem tatuada. Nesse ritmo, o PUS gravou mais de três discos na década de 1990, por selos independentes, e chegaram a lançar Preset pela gravadora Paradoxx. A banda fazia na verdade uma mistura de heavy metal com techno e baticundum tribal, autodenominado, por eles, de Modern Primitivies. Até um canto de cigarra seria capaz de inspirar Syang. Ex-guitarrista do Pus e ultra-sensitiva, ela já chegou a notar presenças extraterrestres. Syang descobriu, com seu guru, o Nacib, que em outra encarnação ela teria sido uma bruxa que dominava guerreiros e bárbaros, enfeitiçava multidões. Dentre tantas propriedades, sabe-se que as bruxas foram vistas muitas vezes deitadas de costas, nos campos e nos bosques, nuas até o umbigo; e, pela disposição de seus órgãos sexuais e pela agitação das pernas, coxas, óbvio, elas pareciam estar copulando com um incubo. Razão pela qual se afirmavam, em especial na Europa, que elas mantinham contato com a ‘magia erótica’, sendo sua principal função resolver paixões amorosas.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Girl [Juliette Lewis]


As moças são esses seres de fuga ou puras relações de velocidades e lentidões. Curioso, uma moça está atrasada por velocidade. Ela faz coisas demais, atravessa espaços demais e sua aparente lentidão se transforma numa longa espera. Não é a moça que se torna mulher nem a criança que se torna adulta, mas é a moça que se traduz em movimento, dinâmica, de uma juventude universal. Como um furacão, ela chegou correndo, sentou-se e está pronta para pedir uma bebida. Ela sabia que começou tarde com a música, então precisava recuperar o tempo perdido: lançar discos e fazer shows. Juliette Lewis ficou conhecida por ser a atriz polêmica de Assassinos Por Natureza, também por sua indicação ao Oscar de atriz coadjuvante em 1991, por Cabo Do Medo. Longe das telas, aos 30 anos criou uma banda, definida de ‘hard rock’ por ela mesma, Juliette Lewis & The Licks, com sua estreia em 2004, no EP Like A Bolt Of Lightning, seguido pelo primeiro álbum You’re Speaking My Language de 2005. O segundo, Four On The Floor, contou com a participação de Dave Grohl, líder dos Foo Fighters, na bateria. Quando começou a banda, o objetivo dela era escrever músicas energéticas e com bom ritmo, pois o luxo para Juliette foi e sempre será o show ao vivo, justifica-se, porque é algo muito elétrico, isto é, lida-se com a energia das pessoas. Em filmes tudo é mais reflexivo, analítico e solitário, num set, com sua equipe, contribui-se para contar uma história, mas a música acabou se tornando a extensão da própria Juliette. Sua banda é formada só por rapazes, cujas maiores influências vão dos épicos do Queen aos rocks psicodélicos de Tom Petty, The Clash e Neil Young. Aqui a música mais uma vez tornou-se uma forma que deve lembrar outra coisa, rebater-se sobre outra, fazer uso de outros rostos e gestos.

Doo-Wop [Amy Winehouse]


Diva do soul, que canta sobre seus canecos e seus amores, a imagem revolta de Amy Winehouse, criada na zona norte londrina, rodeada por rappers, interpreta temas com sua voz clássica, acompanhada de uma sonoridade retro. A cantora investiu em suas paixões: a Motown, o doo-wop, os grupos femininos da década de 1960, o soul. Com um timbre inconfundível e um suingue sessentista. Amy é do tipo que bebe todas e diz o que vem à cabeça. O primeiro álbum, Frank, de 2003, misturava jazz com hip-hop. O segundo, Back To Black [traduz-se o ‘black’ como um estado de espírito negro, um buraco, conta com a música You Know I’m No Good], conta com remix de Ghostface Killah, do grupo de rap Wu-Tang Clan. Na faixa Rehab, Winehouse se recusava a obter ajuda para sua dependência de álcool cantando: ‘I don’t want to drink again/ I Just, ohh, I Just need a friend’. Aproveitando-se da repercussão lucrativa de uma cantora retro, como Amy, em investidas sucessivas no submundo, sua história se espalhou sem grandes segredos, ressaltando seus saltos rumo à desgraça. Toda a vida é, obviamente, um processo de demolição, repetiu-se tantas vezes a propósito das novelas de Fitzgerald, vide o suicídio, a loucura, o uso das drogas e do álcool. Percebe-se que o alcoolismo não aparece como a busca de um prazer, mas de um efeito, que consiste num extraordinário endurecimento do presente. O alcoólatra identifica-se com seu amor, com seu horror e com sua compaixão, desde que a dureza vivida do momento presente lhe permita manter a realidade à distância. O alcoólatra não vive no passado nem no futuro, de sua embriaguez, ele compõe um passado imaginário, como se sua doçura viesse a se combinar com a dureza do presente. O que justifica, talvez, Amy Winehouse surgir dos ‘guetos’ ingleses e antecipar, dentre porres homéricos, a sua própria desaparição, numa cópula entre passado e presente, o retro obviamente demonstra a sua demolição.

Vampire [Meg White]


Próximo do sexto disco, Jack White retomava suas raízes vermelhas e brancas com a baterista Meg White, como se usasse um cobertor velho. Eles já chegaram com um monte de canções meio terminadas aos estúdios de gravação, mas levavam poucas semanas para gravar. Os White Stripes usavam marimbas e piano, sintetizadores analógicos, órgão Hammond, ‘metais de mariachi’ e pouquíssimas interferências de baixo. Suas canções combinavam uma poluição de slides com o jeitão de John Lee Hooker, além de ressoar como música country, feita para tocar nas rádios. Criaram mais de cinco discos em menos de sete anos de carreira, fizeram o máximo possível com o tempo que já tiveram na terra. Pelo menos enquanto a imortalidade for atribuída às espécies determinadas, como os vampiros. Não resta dúvida que, em geral, o prazer que a mulher aufere do coito provenha do fato de que ela castre simbolicamente o macho e se apropria do sexo dele, conforme muitos psicanalistas, assim a mulher torna-se vampiro, mutiladora, come e bebe o seu sexo, alimenta-se gulosamente dele. O vampiro também expressa um caráter carnal monstruoso, excessivo e rebelde. Desde que o conde Drácula de Bram Stoker desembarcou na Inglaterra vitoriana, o vampiro constituiu uma ameaça à sociedade, em particular, à instituição familiar. A ameaça do vampirismo sempre foi sua sexualidade excessiva, seu desejo insaciável por carne, sua mordida erótica que atinge igualmente homens e mulheres, ameaçando a ordem do acasalamento heterossexual. Que ameaça à sexualidade White Stripes tanto provocou senão um sexismo vampiresco, obscuro, onde especular se Mag e Jack eram mesmo irmãos, ‘White’, uma mesma família, pouco importava. Será que faz sentido interrogar os glóbulos brancos e vermelhos representados pelas cores das listras de White Stripes? Ou será necessário questionar se eles foram uma nova geração mordida, que formaram uma raça eterna? Ou será coincidência demais? O que se reconhece é que os White Stripes continuarão marginais, não só como vampiros, certamente, mas como tantos colegiais rebeldes, portadores de desvios, aleijões, sobreviventes de famílias patológicas e assim por diante...

Muse [Beth Gibbons]


Dummy, disco de estreia do Portishead, marcou a junção de Beth Gibbons e Geoff Barrows. Neste disco recuperou-se o mestre da soul music Isaac Hayes [com um sample de Ike’s Rap, presente em Glory Box]. Dummy reinventou o clima down com Sour Times, com seu refrão ‘nobodys loves me’, além de trazer, a preciosa Numb, quando realmente foi possível fundir discoteque, Hitchcock e orquestra sinfônica. O drama explícito na voz de Beth Gibbons paira sobre os climas sombrios do Dj Barrow, ex-colaborador de Neneh Cherry e do Massive Attack. Portishead, vindo de Bristol na Inglaterra, repetiu de uma forma singular o que musas, como Beth, em geral, fazem com a música e a poesia. Por muito tempo, em nossa cultura ocidental, a poesia consistiu em uma forma típica de possessão e de delírio divino. Possuído pelas Musas, o poeta tornava-se o intérprete do tempo, aliás, do passado, com a poesia oral, tal como ela se exerceu nas confrarias de aedos, de cantores e músicos, na idade arcaica. Pouco se sabe como o aprendiz de cantor se iniciava, nessas confrarias, para dominar essa língua poética. As próprias regras de composição oral exigiam que os cantores dispusessem de esboços de dicção formal para sua utilização, prontos para empregar expressões tradicionais, combinar palavras fixadas, identificar receitas de versificação estabelecidas. Assim, as Musas sabiam e cantavam tudo o que foi, o que era e o que seria, ao ouvido dos seus ‘eleitos’.

Queer [L7]


O feminismo sempre teve uma relação necessariamente contraditória com o corpo, pois o corpo nunca deixou de ser o lugar da opressão da mulher, aliás, a especificidade corporal das mulheres tornou-se a base da prática feminista. Muitas teorias sobre o corpo parecem resolver esse paradoxo, na medida em que se opõem ao corpo e favorecem a performatividade da ‘Carne Social Queer'. Essa performatividade Queer não se limita a reproduzir ou a reformar os corpos sociais modernas, mas busca o significado político do reconhecimento de que o sexo e todos os outros corpos sociais são produzidos, continuamente reproduzidos, através de nossas representações cotidianas. Mas nós podemos subverter esses corpos sociais, representando novas normas sociais. Afirma-se que não existem corpos Queer, mas uma espécie de carne Queer, que reside na comunicação e na elaboração da conduta social. A política Queer é, então, um exemplo de um projeto coletivo performativo de rebelião e criação. O L7, aquele quarteto feminino, vindo de Los Angeles, com seus ataques poderosos e com sua fulminante presença de palco, subverteu e representou o rock’n’roll de maneira diferente. Mesmo que não exista uma ideologia política feminista engajada, Queer, como pulsão para unir a banda, trata-se, na prática, de uma das mais bestiais rebeliões 100% feminina no rock: com toda a violência das guitarras de Suzy Gardner e Donita Sparks, do baixo de Jennifer Finch e da bateria de Demetra Plakas. Bricks Are Heavy é um disco de festa, produzido por Butch Vig [o mesmo de Nevermind do Nirvana], que explicita uma equação: Ramones, Motörhead, Joan Jett mais Black Sabbath. Com onze faixas de punk pop predestinadas ao culto, com suas melodias distorcidas, massacrantes, mas ao mesmo tempo acessíveis, parece que ainda agrada tanto aos bangers como aos leigos grudados na MTV.

Nhambiquara [Marisa Monte]


Ela circulava pelo Rio de Janeiro ao volante de um Nissan Pathfinder e costumava jantar em Nova York na casa de Laurie Anderson. Marisa Monte elogiava Chico Science, enquanto Carlinhos Brown tocava o que o Arnaldo Antunes rabiscava, sob um clima ‘estradeiro’, de turnês no interior de São Paulo a viagens pelo Nepal, sua vida era uma viagem e desatava: ‘mais uma vez eu vou te deixar/ mas eu volto logo para te ver, vou com saudade no meu coração/ mando notícias de algum lugar”. É que a história da estrada – ruptura, via abrupta, via rompida, varada, fracta –, do espaço de reversibilidade e de repetição traçado pela abertura, pelo afastamento violento da natureza, da floresta natural, confunde-se com penetrar no ‘mundo perdido’ dos Nhambiquara [pequeno bando de indígenas nômades] que estão entre os mais primitivos que se possam encontrar, atravessados por uma picada [pista grosseira cujo traçado é quase indiscernível do mato]. De outro modo, além da paixão pela estrada, lembra-se de uma treta com o nome próprio que atacou Marisa: "eu não agüento mais a Marisa Monte! Eu não quero mais a Marisa Monte!" Mas era porque ela acordava de manhã e já tinha recado: reunião de vídeo, tal hora; resolução dos discos e ensaio para os shows tal hora. Sua cabeça estava para explodir. Os Nhambiquara, uma dessas tribos sem escrita, escondiam o que as meninas expunham na sua transgressão, não idiomas, mas nomes comuns, próprios. Um dia Claude brincava com um grupo de crianças Nhambiquara, quando uma das meninas tinha sido espancada por outra, que foi se refugiar perto dele, e pôs-se a murmurar alguma coisa em seu ouvido. Claude não compreendeu e a obrigou repetir diversas vezes, esse sussurro, esse ‘barulhinho’. A tal ponto que a adversária descobriu a manobra e veio lhe revelar, furiosamente, o que parecia ser um segredo: dizer o nome da sua inimiga e, quando a outra percebeu, comunicou-lhe o nome da primeira, como represália. Assim foi fácil e pouco escrupuloso conseguir o nome de todos os outros da tribo, com uma pequena cumplicidade criada. Quando os adultos compreenderam esses vocábulos conciliados, as crianças foram repreendidas, secou-se a fonte das informações. Entretanto, Marisa Monte gostava de certas músicas e mais ainda de ser instrumento para que as pessoas as conhecessem, ela não era uma Nhambiquara?

Lesbus [Cassia Eller]


A horrível careta de Gorgô simbolizava as forças que traduzem o esplendor que, neste mundo, a divindade empresta ao corpo de homens e mulheres, quando se refletem bem-aventurados. Mais preocupada com sua voz e com as harmonias, ela não era durona, passava a bola para a banda. Ela adorava improvisar, principalmente ao vivo. Detestava rótulos, mas chegou a ser rotulada de bluseira, sem conhecer tanto blues a esse ponto. Ela gostava de Stevie Wonder, Beto Guedes, Elis, Jovem Guarda, adorava ouvir rádio, mas chegou a ouvi-lo só na hora de lavar as louças. Sua opção sexual pintou na infância, quando a mamãe lhe dava boneca e nada... Sempre queria revólver, farda... Cassia Eller amou Eugênia. Em Lesbos, na Grécia Antiga, havia um concurso público que consagrava esse valor de beleza: por ocasião de uma festa denominada Callistéia, do prêmio de beleza, escolhiam-se as sete mais belas moças, agrupando-se em um coro, prestando-lhe um culto nessa mesma cidade. As qualidades simbólicas e físicas representavam entre os gregos ‘valores’ que ultrapassavam os homens e ‘poderes’ de origem divina. Noutro tempo e noutro diapasão, sem deixar de se estender como mito, Cassia Eller não se envaidecia por ser endeusada por gente como Renato Russo, Frejat e Nando Reis. Ela não conseguia pensar nisso e achava muito engraçado o fato de ser louvada por seus próprios ídolos.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Alice [Fernanda Takai]


Procurar o segredo dos acontecimentos na profundidade das terras, poços e tocas que se cavam, que se afundam, que se penetram e coexistem misturando os corpos: movimentos de mergulho e soterramento dão lugar a movimentos laterais de deslizamento, da esquerda para a direita e vice-versa. Podia ser o começo de Alice de Lewis Carrol ou mesmo a paisagem esburacada das minas. As aventuras subterrâneas de Alice acontecem como os cristais, que crescem e se transformam apenas nas bordas, a não ser pelas bordas. Assim a descida da menina só cresce e diminui pelas bordas, superfície que enrubesceu Carrol. E se não houver nada para ver debaixo da cortina? Inventa-se uma máquina de esticar e aumentar até mesmo as canções. Nos confins das minas, em Belo Horizonte, por volta de 1995, eles foram denominados de ‘superchiques’, o que faz burburinho até hoje. Talvez porque nessa época, os três membros do Patu Fu [Fernanda, John e Ricardo] foram aos EUA, como convidados VIPs da Disney, de lá fizeram um programa de rádio para uma emissora de Belo Horizonte e aproveitaram para fazer um showzinho no SOB’s em Nova York. Era uma noite de ska que só tinha os três de brasileiros. De fato, superchiques! Questionou-se muito a introdução de um baterista na banda: por causa do uso de bits programados numa bateria eletrônica. Toda essa esquisitice e a voz de Fernanda Takai fizeram com que a banda fosse comparada insistentemente com Os Mutantes, a versão Qualquer Bobagem do disco Gol De Quem também contribuiu muito com essa enquete. Já no disco Tem Mais Acabou o trio se transformou num ‘power quatrilho’, com a chegada do baterista Xande. Mas o repertório do Pato Fu sempre foi saudavelmente caótico: colagens de gêneros, bom humor, referência a desenho animado... As guitarras pós new wave mostraram as influências reais da banda, enquanto Fernanda Takai bate palmas, canta, toca e enche a cara num vira-vira.

Afrodisia [Baby Consuelo]


Diz-se que pelo menos entre os negros as danças eróticas eram mais frequentes e ardorosas do que entre os ameríndios. Parece que quanto mais frequente for a dança erótica mais fraca a sexualidade se indica. Como afrodisíaco tais danças correspondem mais à carência e não ao excesso de libido. As danças como as presenciadas por Koch-Grünberg no noroeste do Brasil parecem ter sido menos adoradas entre os ameríndios, porque sua sexualidade, talvez precisasse menos desse artifício. Não resta dúvida que muitas bandas no Brasil fizeram as pessoas se sacolejar, mas na década de 1970, os Novos Baianos recriaram toda uma manifestação singular que envolvia a dança e o desejo entre o seu público. Os Novos Baianos brindaram seus fãs, seduziram a garotada e arrebataram um séquito de prováveis incrédulos a partir da década de 1970, com discos como Ferro Na Boneca, Novos Baianos F.C. e o clássico Acabou Chorare. O grupo mostrou um repertório infalível, cheio de hits e sustentado pela guitarra de Pepeu Gomes, que se tornou marido, por um tempo, de Baby Consuelo, uma das vocalistas do grupo. A banda-comunidade foi formada também por Moraes Moreira e Paulinho Boca de Cantor. Pepeu Gomes entrava de levinho nos solos de guitarra, fazia o diabo, enquanto Baby Consuelo cantava Tinindo Trincando, com direito a virada de olhinhos: a despeito de sua separação, a prole que descende desses dois é inventiva.

Antígona [Gal Costa]


Antígona foi quem formulou a alegação em nome daqueles que não possuíam um status socioontológico completo e definido. Marca-se a posição em que Antígona fala, mas desde que se compreenda que essa posição não seja apenas feminina, porque ela entra no domínio masculino das questões públicas: ao se dirigir a Creonte, chefe de Estado, ela fala com ele, apropriando-se de sua autoridade de forma deslocada e até perversa. Sua alegação desloca os contornos fundamentais da Lei, mas de uma lei que exclui e inclui. Antígona assume publicamente uma posição aparentemente ‘indefensável’, para a qual não existe nenhum lugar no espçao público, enquanto refunda os alicerces de um novo local. Como não se lembrar do gesto toponímico das Dunas De Gal nas praias do Rio senão pela posição desviante de Antígona? As Dunas De Gal se estabeleceram num trecho da praia de Ipanema, sob as botas do governo Médici e com os mentores do movimento tropicalista no exílio, enquanto a juventude atenta da época vivia entre a guerrilha e os charos acesos pela oposição lisérgica ao governo. Em 1971, o show Vapor Barato transformou-se num disco gravado ao vivo no Teatro Tereza Rachel, no Rio de Janeiro, em que Gal Costa era uma estrela, mas de uma atitude ‘marginal’, que cutucava o regime com dardos poéticos, com sua voz que queima como o gelo e corta feito o diamante: de Ismael Silva, Luiz Melodia, Caetano Veloso a Jardis Macalé, Waly Salomão. Gal começa de mansinho com o seu violão, neste disco, conhecido como Gal Fatal, até explodir junto com guitarras e microfonias.

Guayaki [Maria Bethania]


Acontece que a música devém da separação desoladora do canto e da fala, o que se torna singular entre os ‘bárbaros setentrionais’, doces bárbaros. O canto não parece natural ao homem, embora os selvagens americanos cantem, mas porque antes falam. É mais fácil reconhecer a voz falada no homem que escutou cantar. Desse modo o canto deve imitar os gritos e os lamentos. Pode-se falar do canto a propósito das mulheres indígenas sul-americanas, mas em geral trata-se de uma ‘saudação chorosa’. Ritual de saudação a um estrangeiro ou um parente próximo, sempre as mulheres cantam chorando. Tom queixoso, mas com voz forte, agachadas e com suas melodias estridentes. Frequentemente as mulheres cantam juntas. O canto das mulheres jamais é alegre. Os temas são sempre a morte, a doença, a violência, elas chegam a assumir na tristeza de seu canto toda a infelicidade e angústia de seu povo. As mulheres em questão são provenientes de uma tribo chamada Guayaki, nômades que povoam as fronteiras entre o Brasil e o Paraguai. Em princípio poderíamos confundir ou associar o comportamento feminino do canto das Guayaki ao de inúmeras cantoras brasileiras, pela dor, angústia e queixa que ilumina os seus versos. Em especial, Maria Bethania, embora se trate de um jeito mais sofisticado de cantar, só muito longe é que se percebe a exaustão dessa tristeza. O trabalho de estreia de Bethania foi gravado em 1965 e pertenceu ao auge da ‘canção-protesto’. Um protesto maniqueísta que se esfacelava frente a força bruta da interpretação de Bethania, ao ostentar cada fragmento das canções. Neste disco se encontra Carcará, uma das músicas mais poderosas, onde também se encontram as primeiras composições de seu irmão, Caetano Veloso, que foram lançadas; Maria da Graça, futura Gal Costa participou de um dueto em Sol Negro, além da participação de Jards Macalé; Nelson do Cavaquinho tocou em Feiticeira; enfim, desfilaram em seu repertório criações de Noel Rosa, João de Barro, Caymmi, Batatinha e Monsueto de Menezes [em Mora Na Filosofia]. Ideóloga involuntária do tropicalismo, com seu som, Maria Bethania derruba as prateleiras com Lama Negra, Explode Coração ou Cálice - enquadrada na censura e na lei seca dos microfones desligados durante o festival Phono 73. Mas em seu disco Âmbar, em plena década de 1990, as cordas chegaram a ser gravadas em Londres, a masterização em Los Angeles, a voz no Abbey Road.

Rubra [Rita Lee]


A taverna era muito rústica, com uma televisão em preto e branco tremulando como uma bandeira que ninguém saudava. Os habitantes locais estavam orgulhosos demais para se interessar com estrangeiros ou turistas, mesmo que fosse uma linda ruiva com sobrenome inglês, de cafetã azul e pulseira de ouro. Ela desceu pela rampa, perfeita, com seu cabelo castanho-ruivo, seu corpo esbelto, um vestido azul qualquer, que lhe ressaltava as formas como andar, os sapatos brancos, os tornozelos finos e a juventude. Mas ela nunca ficaria exibindo o rabo numa sala de espera de aeroporto. Decidiu cantar... rock. Sem dúvida Rita Lee quebrou as barreiras sexistas dominadas por meninos. Em 1966, com Arnaldo Baptista e Sérgio Dias, fundou Os Mutantes: criadores e criaturas da Tropicália. Mas foi expulsa da banda em 1972. A partir daí trilhou uma carreira com a banda Tutti-Frutti, lançando cinco álbuns, até que no final dos anos 70 casou-se com o guitarrista Roberto de Carvalho – fase que alcançou maior público, misturando MPB com rock’n’roll. Na década de 1960, Rita tocou percussão e teremim em shows dos Mutantes. Sob o título de maior roqueira do Brasil, ela produziu hits que emplacaram nas rádios e nos shows, em todas as fases da carreira, nos Mutantes e solo, do grupo de rock’n’roll Tutti-Frutti ao pop de Roberto de Carvalho.

Pimentinha [Elis Regina]


A mulher permite que a sociedade integre nela as forças cósmicas, mesmo que a magia feminina tenha por muito tempo sido domesticada. A mulher se apresentava, de um lado, como um ser que era preciso raptar, violentar – as sabinas raptadas eram estéreis, fustigadas com correias de pele de bode; de outro lado, as mulheres eram ligadas ao marido por um casamento e asseguravam-se colaborando com ele, com o domínio de todas as forças femininas da natureza. O mundo acolhe o oriental que se contenta com uma fêmea que é para ele um objeto de prazer, mas o ocidental consciente de si reconhece também a liberdade alheia e dócil. Enfim, o cidadão romano, de Cornélia, de Ária, possui seu duplo. Talvez seja nessa natureza binária, dupla, inerente aos homens e as mulheres que Dois Na Bossa [1965] tenha surgido, de Elis Regina e Jair Rodrigues, não sob a rubrica de um matrimônio, não resta dúvida, mas sob uma aliança exuberante, uma das mais belas firmadas por Elis, entre tantas, com Edu Lobo, Tom Jobim, Belchior, Milton Nascimento. Em especial porque esse disco, Dois Na Bossa, vendeu mais de 1 milhão de cópias.Elis cantou samba, bossa nova, jazz e MPB. Registrou sua voz como instrumento na Ordem dos Músicos do Brasil. Venceu o I Festival de Música Brasileria [1965]. O seu show Falso Brilhante [1975] ficou mais de um ano em cartaz. Acrescente-se a esses recordes o álbum Elis [1972] que reúne os clássicos: Nada Será Como Antes, Atrás Do Porto, Cais, Casa No Campo e a gravação original de Águas De Março. O perfil de Elis é inteiramente humano, ou seja, contraditório, polêmico e corajoso. Ela se revelou como uma menina simples do Rio Grande do Sul que veio para o Rio-São Paulo tentar vencer. Em 20 anos de carreira a Pimentinha oscilou de uma intérprete de bolerões ao brilho de palcos do mundo inteiro.

School-Alcohol [Maysa Matarazzo]


Geralmente as mulheres que sentem uma necessidade irresistível de se cortar com instrumentos específicos ou de se ferir de outras formas, criam estratégias desesperadas de ‘volta’ à realidade do seu corpo. Longe de ser uma atitude suicida, o corte é uma tentativa radical de [re]dominar a realidade ou basear-se na realidade do corpo contra a angústia insuportável de sentir-se inexistente. Ao ver o sangue quente e vermelho correr pelo ferimento auto-imposto, elas se sentem novamente vivas e enraizadas firmemente na realidade. Mais do que uma afecção doentia, o corte é uma tentativa patológica de recuperar algo da normalidade que restou, em suma, de evitar um colapso psicótico total. Certas vezes sentem-se esses obscuros momentos que povoaram suas vidas, que lhes encheram de detalhes. Quantos gestos Maysa Matarazzo erigiu contra uma explosão psicológica, reduzindo-se aos cacos por sua vida. Como não nos cercar de pequenos detalhes da vida de Maysa? Como ela se vestia, falava, dormia, cantava, escrevia? Como eram suas ressacas e seus vexames? O vício de álcool causou danos irreparáveis à sua vida e encurtou tragicamente sua vida? Ao adentrar no cotidiano dessa mulher, cantora, depara-se com uma vida prenhe do conteúdo que nos torna humano: a imperfeição. Maysa viveu em constante conflito consigo mesma com os outros, talvez porque ela não coubesse em si, isto é, como se existissem várias personalidades dentro do mesmo ser. O primeiro disco de Maysa saiu em 1956: Convite Para Ouvir Maysa. Compositora que flertou com o samba-canção, consagrando-se na bossa nova, com seu timbre rouco e aveludado, mas a sua queda pelo drama [real e de palco] a transformou numa das mais carismáticas de sua época. Sua vida atribulada por divórcio, escândalos, vícios contribuiu para sua voz, que cantava os desamores, até a sua morte, aos 40 anos.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Femme Fatale [Nico]


O Velvet Underground chocou o pop-rock vigente em Nova York. Sob o olhar vigilante de Andy Warhol, a banda veio a ser a versão alternativa do mundo dos anos 60, excursionando como parte do Exploding Plastic Inevitable – um espetáculo multimídia com música e teatro realizado no East Village Electric Circus. O Velvet optou por um minimalismo: as letras eram levadas em vocais de alcance limitado e ataque inexato; as guitarras enfatizavam a dispersão e a intensidade em vez de harmonia; as tensões eram ampliadas com notas suspensas e solos de viola. Nico foi incluída à banda por Andy Warhol. Modelo alemã de voz grave que durou apenas no marcante The Velvet Underground and Nico. Para nós, resta uma cena de Coração Selvagem, filme de David Lynch, em que Willem Defoe pressiona rudemente Laura Dern num quarto solitário de motel: toca-a, espreme-a, invade o espaço da intimidade dela e repete de um jeito ameaçador: “Fala ‘me fode’!” – ou seja, extorquindo dela a palavra que assinalaria o consentimento para o ato sexual. A cena arrasta-se e quando finalmente a exausta Laura Dern pronuncia um “Me fode!” quase inaudível. Dafoe se afasta de repente, dá um sorriso simpático e agradável e retorque: “Não, obrigado, hoje não tenho tempo, preciso ir; mas em outra ocasião faço com prazer”.

Sélestat [Kim Deal]


Kurt Cobain disse que Smells Like Teen Spirit surgiu quando tentava compor uma canção no estilo dos Pixies. Banda que se formou quando Black Francis se juntou ao guitarrista Joey Santiago, ao baterista David Lovering e à baixista Kim Deal. Sufer Rosa é o primeiro disco da banda, que ajudou a criar o mito do produtor Steve Albini, mas o segundo disco, o Doolittle [1989] é irresistível. Os backing vocals celestiais de Kim Deal ecoam ironicamente sexy. Em Hey, os grunhidos e gemidos dela com Francis fazem sexo animal. Em Tame, Francis Black arfa, as guitarras uivam, Kim geme. No mesmo ano em que o segundo disco chegou ao oitavo lugar na parada inglesa, Kim Deal fundou The Breeders como quem devorou sua própria criação: ato antropofágico, faminto. Rememora-se ‘o caso de Sélestat’, de uma pobre mulher, uma mulher miserável, que matou a filha, cortou-a em pedaços, cozinhou-a e devorou-a, em 1817, quando reinava uma grave fome na Alsácia. O tribunal postulou que aquela mulher não era louca, porque, se matou a filha e a comeu o fez levada por um vetor admissível por todo o mundo: a fome, travestida no instinto de sobrevivência.

Joraï [Kim Gordon]


Na lenda de Joraï, a mulher é fada e caçadora. Ela confecciona as iscas, tece as redes e as armadilhas em que a caça ou os inimigos serão capturados. A mulher de Joraï não participa do massacre da caça ou da guerra, ela deixa para o macho o papel de matador. Por isso, talvez, no momento da ereção da fortaleza ou da cidade, a mulher possua um poder tático. Lembra-se de Vivian ou a Mélusine, de Lusignan, ‘mulher-fada-animal’ que projetou sua fortaleza em um terreno que se faz imenso, graças às suas armadilhas topológicas. Mesmo no romance cortês, romance europeu típico do século XVII, o corpo da mulher foi associado à cidade-fortaleza e suas armadilhas, pois ele era considerado proliferador de surpresas e estratagemas, podendo fazer durar indefinidamente o combate amoroso, o duelo heterossexual e até mesmo a guerra. Imaginar, assim, Kim Gordon, a baixista do Sonic Youth, que construiu a discografia como uma fortaleza nesta banda, botando Lee Ranaldo, Thurston Moore, Steve Shelley e Jim O’Rourke, para matar, eventualmente, tal como a imagem da contracapa de Goo: ‘nothing... lipstick, a little blood’ –, uma mulher limpando com um lenço a boca suja, suspeita, de um homem.

Secret [PJ Harvey]


Polly Jean Harvey se deliciou ao raspar o fundo dos poços e das fossas, ainda se rasga demais e às vezes tranca sua voz em efeitos que beiram o insuportável. Mas mostra que também sabe cantar com sutileza e afiar as emoções que expele. É a voz de PJ, que não há mascaras, não há segredos. É curioso como uma mulher não esconde nada, à força de transparência e inocência. Há mulheres, ao contrário, que dizem tudo, falam até com terrível técnica e habilidade, mas terão escondido tudo por celeridade e limpidez – elas não têm segredo, tornam-se elas mesmas um segredo.

Pinup [Breatless Mahoney]


Em 1914, o ‘isolamento’ do piloto de avião consistia em colocar algodão nos ouvidos para amenizar o ruído do motor e do vento e usar óculos para proteger os olhos, o uso do capacete era facultativo. Vinte e cinco depois, no final da II Guerra Mundial, as cabines pressurizadas norte-americanas tornaram-se um imenso refratário à vida sensível. O efeito do isolamento técnico era muito traumático e prolongado, então o Strategic Air Command decidiu alegrar as travessias de suas unidades pintando sobre a camuflagem de seus bombardeiros, em cores vivas, pinups com nomes sugestivos. Não foi por acaso que Marilyn Monroe foi descoberta por um fotógrafo do exército norte-americano, em plena da Guerra da Coréia. Conhecida como ‘Miss Lança-Chamas’, tais quais os substantivos compostos criados por Marinetti: ‘mulheres-chamas’, ‘veículo-relâmpago’, ‘coração-motor’. Marylin ganhava 150 dólares por semana e tornou-se a pinup mais encontrada nos alojamentos dos soldados. O que constituiu o poder de Marilyn foi a relação entre um tipo de ‘fotografia ideal’ de seu corpo com as suas imagens que não eram divulgadas em escala natural. O corpo de Marilyn chegou a ser exilado de suas dimensões naturais e imediatas: ora ampliável ora pequeno, múltiplo, dobrável como um pôster, uma capa de revista, um prospecto. O corpo de Marilyn, a invasão cirúrgica e a travessia do cameraman se combinaram num instante. Pinup poderia ser um termo justo a Gwen Stefani do No Doubt, mas ela está mais para um cruzamento de Barbie com a Tank Girl, muito pouco para quem cantava Just a Girl. Ela confessava que adorava maquiagem, cabeleireiro, manicure, mas quando pensava em Madonna só pensava em sexo, execrava, porque sexo para Gwen era coisa muito particular. Mais vale o título de pinup a quem ainda encontra repórteres encostados em cada porta de quarto de hotel, com os tietes prostrados em seus calcanhares, acompanhando cada passo seu, de casa à ginástica, do almoço ao estúdio de gravação: Madonna – a Material Girl. Ou melhor, das transmutações de Madonna: Breatless Mahoney, em Dick Tracy [1990].

J. D’Arc [Martina Weymouth]


O núcleo inicial dos Talking Heads surgiu quando David Byrne decidiu formar uma banda junto com seu colega da Rhode Island School of Design, Chris Frantz, também baterista. Eles chegaram a fazer algumas apresentações, às vezes denominando-se The Artistics e em outras The Autistics. Mas a ideia só tomou fôlego quando convocaram a namorada de Chris, Martina Weymouth, para o baixo, quando se mudaram para Nova York em 1974. Talvez a maior contribuição para o rock, atribuída aos Talking Heads, tenha sido a gradativa fusão de sons eletrônicos com polirritmia percussiva, mas o que se repercutiu evidentemente foi a consagrada posição feminina de contrabaixista, mesmo camuflada, às vezes imperceptível, em diversas bandas. No final da Idade Média, Joana D’Arc mostrou-se extremamente poderosa, a ponto de modificar o destino de uma guerra de cem anos. Inicialmente, pastora ou habitante dos bosques e prados, ela foi admitida como estrategista incrível. Uma estrategista de 17 anos, a quem se confiou um exército e a quem os príncipes obedeciam, mas que ia ao combate sem armas e não participava da matança dos homens. Tinha um imenso cuidado com sua aparência transexual, entretanto, depois da instauração do Estado-exército, ela foi vendida, julgada e condenada à fogueira como uma ‘feiticeira’. Destino muito menos cruel teve Kim Deal, Sean Yseult, Kim Gordon, Martina Weymouth, mas não deixaram de ter confiadas bandas, como Pixies, Breeders, White Zombie, Sonic Youth, a quem muitos band leaders obedecessem.

Sacher-Masoch [Poison Ivy]


Rockabilly, psicodelia dos grupos de garagem dos anos 60 e microfonia misturados com a cultura pop mais podre: o universo de Lux Interior e Poison Ivy, do Cramps. Os dois se conheceram na Califórnia em 1972, adoravam pessoas estranhas, alucinógenos e rock primitivo. Casaram-se e se mudaram para Nova York, dispostos a montar uma banda. Eles vivem no passado e sua missão é simplesmente mostrar como ele era muito mais divertido. Mistery Plane resume bem a filosofia da banda: ‘eu não consigo me identificar com esse mundo, então nem tento’. O que os influenciaram é o humor-negro meio Faster Pussycat Kill! Kill!, filme de Russ Meyer, sobre um grupo de mulheres que barbarizaram com seus carros em pleno deserto. Quando ela toca Ivy guitarra, ela entra em transe psicodélico, tem visões e coisas do tipo. Formas opulentas e musculosas, caráter altivo, vontade imperiosa, certa curiosidade na ternura ou na ingenuidade: cortesã oriental, terrível czarina, revolucionária húngara, criada-patroa, camponesa sármata, mística gelada, mocinha de família – todas elas se situam em uma mesma base, princesa ou camponesa, com pele de arminho ou de carneiro, é sempre a mesma mulher de couro e de chicote que torna o homem seu escravo.

Hetera [Courtney Love]


A grega, a hetera ou Afrodite, geradora de desordem – as mulheres pagãs. Elas mesmas dizem que vivem para o amor e a beleza, no instante. Sensuais, amam quem lhe agradar, entregam-se a quem ama, querem independência e brevidade nas relações amorosas, evocam a igualdade entre os sexos, preferem fazer alusão ao mito do hemafroditae. Ela precisa acreditar que sonha mesmo quando não está sonhando. “Que tipo de julgamento é esse que faz as pessoas acharem que, se alguém muda o cabelo e a cor do batom, vira imediatamente uma outra pessoa? Courtney está apenas alcançando o potencial que eu sempre soube que tinha”. O palpite sobre a viúva de Kurt Cobain é de Michael Stipe [vocalista da banda R.E.M.]. Numa edição do Lollapalooza, Billy Corgan dos Smashing Pumpkins abriu espaço para Courtney Love cantar Miss World, acompanhada apenas por sua guitarra, ele debochava do jeito da líder do Hole tocar guitarra. Mas a afirmativa mais inquietante foi: “Courtney Love é o Iggy Pop dos anos 90. Muito primal, muito forte. Eu não compro toda bobagem que rola na mídia. Offspring é legal, Green Day eu gosto mais pelo espírito e o Rancid parece demais com The Clash. Mas o Hole é definitivamente um dos meus grupos favoritos!”, confessou Joey Ramone sobre suas preferências.

O menino Elis [D’Arcy]


A baixista D’Arcy e o guitarrista James Iha já dividiram mais do que o mesmo palco. Os dois já moraram juntos até as gravações de Siamese Dream. Os Smashing Pumpkins eram, a princípio, formados por Corgan no baixo, o guitarrista James Iha e uma bateria eletrônica. A baixista D’Arcy foi recrutada após um esbarrão acidental seguido por uma discussão com Billy. “Ela me disse: ‘Que porra você pensa que é?’. Foi aí que senti que havia uma sintonia”, alucionou Corgan – ,como um garoto adolescente, jovem, louro, inocente, provocado agressivamente e depois rejeitado pela mulher vulgar, madura e decadente. Corgan e o menino Elis, etéreo, morto vivo, de rosto pálido. Menino frágil e ‘não nascido’ que é o próprio personagem assexual aterrorizado de O Grito de Edvard Munch. Ou mesmo o menino faminto e assexual de olhar apavorado. Quando repudia seu fascínio a Mulher, o menino perde sua característica de menino e transforma-se em uma mulher jovem, de rosto azul, monstruosamente fria: a personificação do Androgynous. Percebe-se Elis na série de figuras similares de horror à la Stephen King: a criança assexual, monstruosa, etérea, pálida, ‘não morta’, que volta para assombrar os adultos – um herói sem teto e misterioso.

Vênus de Gelo [Björk Gudmundsdottir]


Menos de 1,60 m, franjinha negra com vestido até o tornozelo, ela chegava pisando com boots pesados. Bochechas inchadas de sono realçavam a miudeza de seus olhos verdes. Debut, seu álbum de estreia, vendeu mais de três milhões de copias mundo afora. Ela atende pelo nome de ‘bétula’, um arbusto que se dá em clima frio e que, num pequeno país perto do Ártico, ganhou a tradução de ‘Björk’. O termo designa uma planta, até que em novembro de 1965, quando foi parar na certidão de nascimento daquela que se consagrou como a primeira popstar da Islândia: Björk Gudmundsdottir. O sentimento supra-sensual subsiste sob o frio, rodeado de gelo e protegido por peles. Sua sentimentalidade brilha através do gelo como princípio de uma ordem geradora, como cólera e crueldade específicas. O frio é o meio protetor, casulo e veículo. As peles mantêm seu caráter utilitário, menos por pudor do que por medo de apanhar um resfriado. Com corpo de mármore, mulher de pedra, Vênus de gelo –, elas espirram.

Malleus Maleficarum [Diamanda Galas]


Diamanda Galas, a cantora que imantou as superfícies planas dos pianos e dos cabos de madeira de seus instrumentos, ampliando a sua sonoridade: pôs-se a voar, altitudes e nevascas. Sua voz soturna passeando sob um piano longínquo em Gloomy Sunday ou quando recitou o conto The Black Cat de E. Allan Poe, até mesmo em seus encantamentos medievais em Eclipse no disco Weird Nightmare, mas principalmente barbarizando em Sex Is Violent entre Trent Reznor e Jane's Addiction, sempre a mesma impressão: seus truques, gritos, uivos, feitiços... de uma bruxa. Está escrito no Malleus Maleficarum que as bruxas têm maior capacidade de agir através do sexo, assim elas praticam encantamento para iludir o homem e estimulá-lo ao ato sexual. Mas as bruxas são iniciadas nas artes mágicas e aprendem a fazer uma pomada especial, feita de cozido de crianças, de grande utilidade para a realização de seus sortilégios. Cozinham num caldeirão, até que toda a carne se despenda dos ossos e se transforma num caldo, mas da matéria mais sólida faz-se uma pomada, muito útil em seus ritos, em seus prazeres e em seus vôos. O vôo das bruxas é possível graças à utilização desta pomada, confeccionada com os membros de crianças, principalmente daquelas mortas no batismo: a bruxa unge um cabo de vassoura com a pomada e, assim, eleva-se ao ar durante noites e dias inteiros, podendo, além disso, tornar-se visível ou invisível conforme desejar.

Canto Inumano [sereias]


Ella Fitzgerald, em 1958, tornou-se a primeira cantora negra a ganhar um Grammy, em contrapartida, Billie Holiday, em 1955, estava em completa decadência, dominada pelo álcool e pela heroína, para alguns, sua voz, no disco Lady in Satin [1958], parecia a de uma sexagenária. Ressaltam-se as Ronettes [Nedra, Estelle e Ronnie Spector] com seu som datado, mas absolutamente irresistível. Destaca-se a própria sina da menina que carregava no batom e ficava borrada, o que fez Angela Maria se sucumbir ao destino cafajeste do Brasil. Virou kitsch, Babalu, como toda virgenzinha suburbana que está sempre louca para se perder. Até mesmo nos anos 90, Alê [baixista e cantora da banda Pin Ups] analisou o machismo do rock nacional e se revoltava com Raimundos, Charlie Brown Jr , etc.: ‘no Brasil, a maioria das bandas de meninas que fazem rock é desconhecida e não tem contrato com gravadora’. Como as Riot Girls mais agressivas do punk rock feministas, Babies In Toyland, L7 e Seven Year Bitch, quase todas acabaram ou por falta de vontade ou porque morreram de drogas ou porque ficaram anoréxicas. Carole King, em seu disco Tapestry [1971], comparou a vida a uma tapeçaria onde figuras mágicas se sucedem até a aparição da morte. Uma dose excessiva de cinzano e cocaína calou a voz de Elis Regina em janeiro de 1982. Tratam-se não de interpretes, cantoras ou musas, mas especialmente das próprias ‘Sereias’: consta que elas cantavam, mas de uma maneira que não satisfazia e que apenas dava a entender em que direção se abria as verdadeiras fontes e a verdadeira felicidade do canto. Era um canto inumano – um ruído natural, sem dúvida, mas à margem da natureza, de qualquer modo estranho ao homem, muito baixo e despertando nele, o prazer extremo de cair, que não pode ser satisfeito nas condições habituais de vida. Por seus cantos que não passavam de um canto ainda por vir, conduziam o navegante em direção àquele espaço onde o canto começava de fato. Onde só se podia desaparecer, porque a música, naquela região de origem, tinha também desaparecido. Mar onde, com orelhas tapadas, as Sereias, como prova de sua boa vontade, acabaram desaparecendo elas mesmas.